Primeiramente gostaria de dar um breve relato de minha experiência como mãe de anjo. Após nove anos de relacionamento, eu e meu companheiro decidimos que finalmente era hora de ter nosso filho. Então nos informamos e planejamos tudo para ter nosso bebê. Não demorou para ter o nosso positivo, fizemos os testes de farmácia juntos e comemoramos o resultado. Desde este dia nossa vida mudou, estávamos muito felizes! Fomos no obstetra juntos, ele me acompanhou nas ecografias. Mas infelizmente também houve muitas brigas com membros da minha família, o que me gerou certa angústia durante a gravidez.
Na 6ª semana de gestação tive um pequeno sangramento, mas como parou continuei a levar a gravidez. Duas semanas se passaram e tive outro sangramento mais forte e corri para o hospital. Chegando lá meu sangramento parou e meu colo estava fechado. Como no outro dia já tinha uma ecografia marcada, os médicos disseram que eu a fizesse e já sondasse se algo tinha acontecido. E durante o exame a fatídica notícia; havia um saco vitelínico, mas o embrião não se desenvolveu e eu estava abortando. Como o aborto estava retido, tive que fazer uma curetagem entre a 8ª e a 9ª semana de gestação.
Eu e o pai do meu filho ficamos arrasados! Até hoje choramos quando lembramos de tudo que passamos. Decidimos que não íamos passar por cima do sentimento de luto, pois este bebê foi muito especial para nós. Para mim foi um bebê que trouxe muitos ensinamentos, pois me levou a ter muitos insights sobre a vida, ainda mais que na época iniciei um curso sobre introdução ao budismo com uma mestre Zen.
Um dia, quando completava 4 semanas após a curetagem, senti novamente uma tristeza e procurei algum conforto em grupos de apoio a perda gestacional na internet. Me deparei com uma matéria que me chamou muito a atenção por ter muito a ver comigo e com o momento que passava. Tal matéria caiu em cheio e me deu um certo consolo, ela tratava de uma prática japonesa que tem como objetivo prestar homenagem aos fetos abortados. Compartilhei isto no grupo fechado do SobreViver no Facebook e percebi que várias mães de anjo se sentiram confortadas em saber que em algum lugar no mundo a perda de uma gravidez é tratada de forma tão respeitosa. Tanto que me pediram para escrever a respeito. Então, vamos lá!
O Mizuko Kuyo é ritual da tradição do budismo japonês, uma cerimônia feita em memória de bebês perdidos em qualquer fase da gestação, no parto e depois dele. No ritual, a imagem de um “Mizuko” (“filho das águas”) colocada em um santuário, é visitada pelas pessoas que tiveram a perda e que nela deixam um objeto – roupinha, brinquedo, uma lembrança – e fazem preces com a supervisão do monge. Os Mizukos ficam num local dedicado a Jizô Bosatsu, entidade muito querida no budismo japonês que, entre muitos atributos, é considerado o guardião das crianças.
A prática tem várias funções: reatar a conexão com o ser perdido (como em outros rituais feitos para os ancestrais), elaborar o luto parental, pedir pelo conforto da alma do bebê e proteção para a família e até uma forma de expiar a culpa. Para as perdas gestacionais muito precoces, ou que não se tem funeral, o ritual ajuda a materializar a perda e a trabalhar melhor o processo de luto.
O nome “Mizuko” literalmente significa “criança d’água”. Existe uma longa explicação para a origem deste termo, mas não me deterei nestes detalhes. Em resumo, é uma referência ao líquido amniótico e também porque água representa vida e purifica. Os Mizuko são puros e não tiveram tempo de gerar karma, a perda tanto de um feto como de bebê recém-nascido é uma oportunidade perdida deste trilhar o caminho do Dharma (caminho para iluminação), por isto esta perda é tão lastimada. O Jizo Bosatsu se encarregará de vigiar os bebês e de facilitar o caminho deles até o céu. Os monges recomendam aos pais cuidarem dos Mizuko, rezarem sutras, enviarem sentimentos de amor e alegria para que aonde estiverem eles possam senti-lo.
A prática varia conforme a escola de budismo, mas basicamente tem o mesmo fim. Ao invés de ser uma coisa mórbida, os locais aonde se encontram os Mizuko são lugares bem alegres, alguns tem até playground para as crianças brincarem. Como já mencionei, a angústia não é recomendada, pois pode atrapalhar o bem-estar dos Mizuko. Para estes sentimentos de angústia, pesar e culpa há sempre a orientação dos monges que se colocam disponíveis para ouvir e aconselhar os pais.
Acredito que a prática do Mizuko Kuyo possa servir de inspiração para muitos pais que tiveram perda gestacional, permitindo criar uma forma de lidar com a perda e trabalharem o luto, seja fazendo uma tatuagem, plantando uma árvore, acendendo uma vela. Aqui na nossa sociedade temos uma grande dificuldade de externar esta perda. Além disto temos que lidar muitas vezes com a falta de sensibilidade e empatia. Simplesmente calamos nossa tristeza no coração e seguimos em frente. A exemplo dos japoneses poderíamos criar nossos próprios rituais para celebrar este Ser que esteve em nós e foi tão desejado. Tal prática pode tornar a dor da perda menos insuportável.
Minha perda gestacional me ensinou muita coisa e gostaria de dar um recado a todas as mães que passaram por isto. Não se envergonhem de chorar ou de sentir saudade dos seus anjos. Não sintam culpa da tristeza, ela é normal. Eu sinto saudades do meu bebê, mesmo que não tenha crescido, pois o simples fato de saber que ele “viria” mudou minha vida, portanto não posso trata-lo somente como um embrião que fracassou, mas como um SER que foi muito amado. Nós, budistas, celebramos o luto de uma forma um pouco diferente. Para nós, a morte é apenas uma mudança, uma passagem, não propriamente um fim, pois vida e morte fazem parte de um ciclo natural. Não negligenciamos as perdas, a sentimos e choramos, homenageamos os que partiram e, principalmente, os honramos com muitas celebrações. Este ser que um dia esteve em você, não só no seu ventre como em seu coração, não deve ser largado ao limbo do esquecimento, ele deve ser muito HONRADO. Cada momento é único, cada gravidez é única, cada bebê é único. Nenhuma perda se compara a outra, pois só quem passa pelo sofrimento sabe de sua dor. Portanto, honre seu Anjinho como um Ser único, com muito amor, carinho e respeito.
Cuidem-se bem mães e pais e cuidem de seus Anjinhos (ou Mizukos).
Sugestões de vídeos, enviadas pela autora, sobre esta linda tradição budista
Vídeo informativo do templo Zenshoji (Budismo Shingon) que realiza o ritual do Muzuko Kuyo. É possível ter uma ideia de como é feito a cerimônia:
Vídeo de um desenhista de Anime Independente que, inspirado pela história de perda gestacional de sua mãe, fez esta história linda. Nele, se conta a historinha de uma mãe e seu Mizuko. Outro dia parei para ver os comentários em japonês e acredite, as mães japonesas têm sentimentos muito parecidos com as mães ocidentais:
Vídeo que mostra o templo de Zojo-ji, em Tóquio, no Japão, que foi criado exclusivamente para os Mizuno:
Ola! Adorei o post. Eu cruzei com os jizo durante uma pesquisa de curadoria de artes para minha galeria, achei eles muito doces e serenos mesmo. E assim comecei a esculpir eles no meu atelie. E somente depois pesquisando sobre descobri mais sobre eles na cultura japonesa e seu texto é um dos mais completos sobre esse assunto. Gostaria de compartilhar com vc do grupo o trabalhos que realizamos e caso desejem um buda jizo como forma de confortar, nos produzimos eles artesanalmente em algum modelos mas também personalizados. Estes dias mandamos um para uma mamãe na austrália que passou pela perda de seu bebê, e e muito bacana saber que esse tema tão difícil pode ser tratado de forma mais doce e lúdica.
Oi, faz um tempo que escrevi este texto para o grupo Sobreviver. Que bom que gostou!
Sim, existe uma grande dificuldade de falar sobre o aborto no Ocidente, acho que por conta das ideologias influenciadas pelas crenças judaico-cristão, falar sobre o assunto é sempre um tabu. Poucas pessoas conseguem falar de maneira delicada, sem preconceitos. Isto inclusive influência alguns praticantes de budismo no Ocidente, pois não devemos esquecer que os ocidentais que se convertem ao budismo estão impregnados seres pensamentos. É tabu para os budistas ocidentais também, mas no Japão não é tratado com tanto tabu. Infelizmente temos que primeiro romper estes paradigmas para depois falar abertamente sobre o assunto sem cair na dualidade do pro-vida e pro-aborto. Quero um dia poder realizar esta cerimônia no Brasil, o problema é que sempre esbarro nestes dilemas.