O título por si só já é impactante. Ler o livro “O Pai da Menina Morta”, escrito pelo Tiago Ferro e lançado em 2018, também traz alguns sentimentos de estranhamento, confusão, dor, ou como foi no meu caso, dèjá vu.
Quando Bianca morreu, em 2015, procurei avidamente por livros que falassem sobre a morte de uma criança, sobre os sentimentos do luto e encontrei poucos títulos em português. Na época, acabei comprando “Até breve, José” e “Maternidade Interrompida” (veja nossas indicações de livros aqui). Além deles, achei muitos livros sobre luto escrito por psicólogos e para psicólogos. Além de livros religiosos sobre a morte. Em inglês os títulos escritos por pais e mães pipocavam na Amazon.
Então me joguei na internet, principalmente nas redes sociais, para encontrar relatos, depoimentos, histórias parecidas com a minha que me trouxessem alento e identificação. No luto imediato foi muito importante para mim perceber que não estava sozinha na dor… Em 2016, se utilizando também das redes sociais, Tiago compartilhou seu luto com postagens repletas de sinceridade e também um longo e tocante texto para a revista piauí sobre a construção do luto.
O livro O Pai da Menina Morta é um romance e por isso não se prende apenas ao que aconteceu com Tiago quando, em 2016, sua filha Manu, de 8 anos, morreu. Mas reflete situações vividas por ele, compartilha angústias, medos, culpas, aqueles pensamentos que nem nós entendemos direito, mas que inundam a nossa mente logo após o choque da morte de um filho.
Minha vivência participando do SobreViver nos últimos três anos me mostrou que, na maioria das vezes, as mães têm mais facilidade (ou mais necessidade) de falar sobre o assunto. A presença de pais nos nossos encontros não é tão frequente se compararmos com as mães. Também por isso o livro do Tiago chamou a minha atenção: como esse pai vai expressar a sua dor? Como ele vai colocar em palavras o que se passava com ele na despedida tão repentina de sua menina? Ele se expõe? Mas, e aquela história de que homem não demonstra sentimento?
Vale muito a pena ler o livro e acompanhar esse pai pelos seus altos e baixos, pelo luto mais latente e pela vida que segue mesmo quando a gente não gostaria que seguisse. Muitas vezes eu me identifiquei com ele, na ânsia por me sentir viva novamente, mas também na culpa que surgia do nada e invadia os meus dias quando eu já achava que estava caminhando bem.
O livro é formado de fragmentos e o autor permitiu que a gente publicasse um trecho aqui para compartilhar com os pais que acompanham o SobreViver. Saiba mais sobre o livro ou compre no site da editora clicando aqui.
“Depois da morte da filha deles, eles não conseguiram mais se encarar. Era como se soubessem que as retinas haviam se transformado em mercúrio onde estaria passando em looping a vida e a morte da menina amada. Oito anos. Evitar passou a ser uma proteção. Um refúgio. O pequeno apartamento foi aos poucos ganhando ares de casa de campo fechada para sempre. Lençóis sobre as poltronas, poeira nos móveis, cortinas fechadas, porta-retratos deitados com os rostos amassados contra a estante, cheiro de lã. A coleção completa do Octavio Paz em espanhol se desmanchando volume por volume a cada minuto. Ninguém ligava. A paisagem noturna de Cubatão vista de dentro de um carro a caminho do Guarujá nos anos oitenta. Eles já não se tocavam. Crianças nascendo mutiladas. Sem fórceps, sem parquinho ou qualquer compensação. O corpo dela havia adquirido uma textura fria de estátua de bronze. As pintas nas costas, as marcas da puberdade no rosto, o pelo saindo da narina esquerda, ela odiava aquela cartografia corporal respirando ao seu lado na cama. É expressamente proibido amar depois de Auschwitz.”